Esta história tem tanto de belo como tem de falso.
Ela era uma jovem de quinze anos. Uma menina, como dizem por aqui. Ele tinha dezoito ou dezanove mas fez-lhe um filho. Ficaram juntos depois de apaziguado o escândalo entre família dele, grande, dominadora e repleta de irmãs beatas, e a família dela, pai e mãe, conservadores quanto baste. Aqui chamam-lhes atrasados. O menino nasceu. De uma menina.
Sem vontade de estudar, nem sequer apoio para tal, já que agora se tornara mulher, forçada pelas contracções da natureza, foi trabalhar para um café que a família dele tinha. Saiu de um controlo para outro. Este sem as amarras desculpáveis do sangue. O café ficava cheio de velhos bêbedos, pendurados no balcão, gastando as horas a encharcar os poros e a roupa bafienta com bagaços e minis. Babam-se, sem dentes, pela noviça que serve ali, contra vontade, vigiada pelos olhos de rapina das cunhadas ressabiadas. Lançam um rumor, boato vil indiciando que ela cedeu perante a vontade de um homem, mais velho, que se parou ali, pendurado no balcão elogiando as curvas da menina ainda não feita mulher. As cunhadas alimentam o rumor, o marido desconfiado, eriçado, enfeitado na fronte pelo veneno alheio e pela desconfiança na juventude insensata, escorraça-a. As cunhadas escorraçam-na. Os pais escorraçam a filha porque a vergonha lhes enche a casa com os comentários do povo. Melhor será afastar a menina-mulher e esquecer que a pariram.
Fica sozinha. O marido proíbe-a de ver o filho. Anos passam e ele refaz a vida. Tem uma filha mais nova de outra mulher. Roliça, melhor, gorda. Uma menor fonte de preocupações para um espírito desconfiado e inquieto. A menina, agora jovem mulher, tem namorado. Durante 12 anos procurou aproximar-se do filho. O pai não deixava. A mulher carregava a sua desonra. Tirou-lhe o filho. Proibiu-o de ver a mãe. De lhe telefonar sequer. Ela fotografava o seu menino à distância, via os seus jogos de futebol das bancadas. Via-o crescer saudável, sempre longe do seu carinho, da sua voz doce a sossegar noites febris. É melhor nem insistir muito. O pai ralha-lhe. Ainda lhe bate, se for preciso.
Há duas semanas, num dia quente de fim de Primavera, o pai foi com a família à praia. Praias que ganham às falésias do Oeste, ainda à espera da acalmia do verão. O filho foi nadar. A corrente era forte, as rochas prenderam-no. O fundo segurou-lhe a vida. As ondas devolveram o corpo à família paterna uma semana depois.
No funeral, o pai agarrava-se ao caixão e gritava pelo seu menino que sempre protegeu. A mãe chorava afastada do seu menino, pois quando se quis chegar ao corpo do filho que nunca pode amar foi ofendida e escorraçada pela família paterna, hienas acossadas pela dor e ignorância.
O pai perdeu o seu menino. Sempre o quis para si. Agora tem-no ali, hirto e inchado. A mãe não sabe o que perdeu. Mas, em silêncio para não inquietar as hienas, as lágrimas quentes escorrem na pele sofrida.
4 comentários:
1. Estou abismaravilhado com este post, o qual é muito bem escrito e tocante. Temos uma Amélie Nothomb portuguesa na blogo, temos... :)
2. Situações destas não são de todo inverosímeis no nosso país, sobretudo no meio rural, pois somos um povo obcecado com as aparências e com uma educação familiar farisaica.
Fogo, o meu post faz lembrar isso tudo?? :) Thanks.
Pergunto-me se a mãe, por entre o labirinto da dor, não se terá deparado com alguma réstea de arrependimento por não ter enfrentado as hienas.
Rui: julgo que terá sempre. Mas o medo passou a ser um reflexo. A mãe nunca conheceu outra realidade.
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