Ontem apeteceu-me enfiar-me num centro comercial num intervalo do trabalho para respirar a frescura do ar condicionado. Depressa passei revista às montras para me enfiar na Fnac. Parei os olhos no novo livro da Inês Pedrosa tão elogiado na manhã da Antena 1, por um dos jornalistas do Hotel Babilónia. Raptei-o por momentos e acantonei-me no refúgio dos leitores pobres. Já ia na página vinte quando me perguntou:
- Desculpe se a interrompo mas, não acha fantástico estarmos aqui a ler, podendo usufruir momentaneamente dos livros sem dar nada em troca?
Estava todo vestido de branco e tinha um ar estrangeirado. Uns óculos muito escuros na cabeça queimada pela longa ausência de cabelo.
- Sim, é óptimo - disse, imaginando que vinham a caminho umas mariquices para me interromper a leitura lançada.
- Já decidiu se vai levar o livro? - perguntou. - Há livros que valem a pena, outros limitam-se a ocupar espaços.
- Visto nessa perspectiva, sinto que depois de lido, por muito bom que seja, não será retirado da estante para leituras futuras. Ainda estou a decidir.
- Talvez os algarismos na parte de trás a convençam.
- Bem visto - olhei para a contracapa - provavelmente volto na quarta para novo avanço. Sorri.
- Eu tenho centenas de livros espalhados pela vida de outras pessoas. Guardo-os nesta memória de um velho de 85 anos. É o suficiente.
- Bem gostaria de fazer o mesmo. Tenho uma relação de posse com os livros. Poucas coisas me despertam ciúme ou revolta como os meus livros. Empresto mas gosto que regressem às minhas estantes.
- Mais uma vez, desculpe incomodá-la, não queria perturbar a sua leitura mas é que fiquei viúvo recentemente e sabe, tenho-me sentido um pouco sozinho. Tenho saudades de conversar.
Os olhos encheram-se de água e rasgou os lábios com um sorriso de dentes velhos mas persistentes.
- Lamento muito a sua perda - respondi-lhe. (Acho que nunca tinha dito isto de forma tão sentida.)
- Também eu - afirmou, sorrindo uma vez mais.
Falámos do cizentismo dos portugueses, de Nietzsche, de Padre António Vieira, de gargalhadas e de como às vezes é bom falar com estranhos. Chama-se Francisco José e provavelmente nunca mais falarei com ele. Há muito tempo que não me acontecia uma conversa tão boa.
7 comentários:
Uau,
essa foi mesmo uma conversa boa.
Por acaso foi. Muito boa.:) Gostei da fotografia dos gatos. Também eu gosto mais de cães.
Boas conversas como essa são raras hoje em dia.
É, sem dúvida, bom falar com estranhos... desde que sejam boas conversas, claro!
Mas é, acima de tudo, bom falarmos com quem conhecemos e gostamos...
Não temos falado muito ultimamente... Mas eu gosto de ti, miúda!
L.
Eu sei, L. Eu sei. O que me custa mais a aceitar é que me troques por corais e tesourinhos virtuais... ainda se andasses mesmo a mergulhar, entenderia. Mas, como seria de esperar, perdoo-te tudo porque te adoro. Também tenho saudades tuas e se falhas os nossos aniversários, you're dead mate! beijinhos.
à roda de livros encontram-se estas preciosidades, os livros estão vivos, convocam gente, gente de carne e osso. bjo miúda
É muito raro encontrar-se substância em conversas fortuitas com desconhecidos...
Tiveste sorte.
Via e Maldonado, foi sorte e quiçá o acaso. Não podemos é virar as costas nem a um nem a outro. beijinhos.
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