terça-feira, 21 de setembro de 2010

Inspiration

I miss your long texts, she said, they were a good company. A verdade é que também eu sinto falta deles. Dizem que se estivermos deprimidos, a criatividade jorra como fonte em inverno choroso. Se me dizem que não pareço tão jovial e animada como de costume, talvez isso fosse sinónimo de escrita profusa. Não é. Temos pena. Eu tenho pena. Não tenho é a pena do Shakespeare senão espetava-vos aqui com o Romeu e uma Julieta pós-modernos. Tenho teclas que são usadas para listar notas de testes diagnósticos e enviar mails profissionais. Teclas mortiças. Mas posso contar uma história:


Ele entrou, alto e bronzeado. Ela aproximou-se dele, roliça, com uma aura de solidão aconchegando-lhe as costas largas. Tocou-lhe no braço musculado e mostrou-lhes os papéis. Ele olhou para eles sem se dar conta da importância que o braço dele tinha na mão dela. Trespassava-lhe o círculo da solidão física que ninguém ousava invadir ultimamente. Ela culpava as poucas horas de passadeira e os belos rissóis de camarão do bar por essa ausência. Desceu do músculo para o cotovelo. Chegou-se para ele. Apontou para uma alínea, na página dois. Ele leu, concentrado. Ela fingiu olhar para a importância do artigo enquanto inspirava o seu perfume recentemente espalhado pelo corpo. Imaginou que ele lhe tocaria nas costas, arrebatando-a por momentos, dizendo, podemos ver isso depois, a sós, se quiseres. Ele acabou de ler. Ela perguntou-lhe se estava bem assim querendo que ele lhe tirasse a migalha do canto da boca. Ele respondeu que estava óptimo e sorriu abertamente, como sorrimos a uma criança que nos faz uma graça mas que não queremos levar para casa a dormitar no peito. Afastou-se, agradecendo-lhe. Ela fechou a pasta e o círculo em torno da sua solidão. Aproximou-se do bar e pediu mais um rissol.
Para a minha amiga R.
Que nunca deixemos de sonhar.

4 comentários:

via disse...

porquê rissois? gostei da expressão círculo de solidão e dele se situar nas costas. quanto ao rapaz vê mas é cego. coisas.bjo grande

Cassandra disse...

Porquê rissóis... porque foi a última coisa que a vi comer. Só por isso.

sofia disse...

Bonita prosa. Faz lembrar os parágrafos enleados da Marguerite Duras. Sobre a pescadinha de rabo na boca da azáfama laboral= falta de tempo = cansaço = desinspiração= azáfama laboral... revi-me bastante:)

Cassandra disse...

Obrigada, Sofia. E agora com os aumentos do IVA e cortes nos ordenados, a inspiração diminui a olhos vistos.