Os vizinhos começaram a discutir. Uma vez mais. Depois do jantar. Quando ele chega. As vozes altas e roucas, gastas de tanta ofensa. Os gritos e as interjeições atropelam-se com o esbracejar imaginário. Na televisão nada de jeito. A vizinha foi comprovar se a teoria do copo funcionava. Encostou a orelha à parede e o copo de whisky vazio definiu-lhe os impropérios através da parede. "Dei-te 16 anos da minha vida!", gritava ele; "Fartaste-te de comer do que era dele (sogro), não me venhas falar em dever obrigações" guinchava ela, à medida que a voz se afastava pelo apartamento. Ele mantinha-se numa espécie de escritório, paredes meias com a cozinha da escuta oportunista. "A guarda não pode ser conjunta. Vai e deixa-me trabalhar, que alguém tem que pôr dinheiro em casa" ele; "Tu és um inocente... "e afastava-se uma vez mais. O facto de obter mais informações do marido do que da mulher, prestes a deixarem de o ser, não ajudava a esclarecer a raiva. Se houvesse porrada chamaria a polícia, decidiu. Repetiam-se muitos pronomes "Tu, tu, tu, tu... ai, sim??? EU, eu, eu? Ai foi?" Tá bem, tá bem... A ti já te conheço de ginjeira!". Supunha que sim, depois de ouvir a história dos 16 anos. Nunca os viu nos elevadores. Nunca se cruzaram mas ouve-lhes as batalhas verbais em horário nobre. Esta última fluída, através do vidro.
Cansou-se de tanto ódio. Sentou-se no sofá com o comando numa mão, acariciando a cabeça dele com a outra. Passou uma hora. A batalha perdurava com sangue a sair-lhes das cordas vocais. Despojos de dezasseis anos que mais parecem um engano. Desligaram a televisão e foram deitar-se, afastando-se dos urros e ataques desferidos no apartamento ao lado. Fizeram amor e devolveram-lhes a amabilidade com gemidos. Aninharam-se um no outro e adormeceram com a certeza de não quererem acabar assim.
Sem comentários:
Enviar um comentário