Era a minha melhor amiga. Era, porque não havia muitas crianças naquela rua e porque a vida nos levou em direcções distintas. Tinha nascido na França mas era filha de portugueses. Não se deram bem por lá. Tinha olhos verdes e cabelo louro com umas sardas polvilhadas na pele esbranquiçada. Ela pálida, eu morena. Eu uma líder nata. Chata como tudo. Mais pequena e mais nova que ela, mas, mesmo assim, cheia de mania. "É assim que se faz..."Ela era uma doçura e cheira de paciência face ao meu turbilhão de emoções, farta do isolamento. Ela entrou primeiro para a escola and all hell broke loose. Ela vai e eu não vou, ela vai saber mais que eu, eu vou ficar em casa..... e as lágrimas de quem não consegue fazer avançar os anos. Ela deixou de estudar cedo. Não tinha jeito para a coisa. Também não gostava muito. Afastámo-nos na adolescência. Eu ganhei uma nova melhor amiga com quem partilhava muito mais, com quem tinha todos os interesses em comum e mais alguns. Ainda somos grande amigas.
A minha primeira grande amiga, pálida, de sardas, teve dois filhos. Encaminhei-a para um médico quando achei que os gritos e o isolamento do filho mais velho me pareceram demasiado avessos a um mero aluno sobredotado. Ela agradeceu-me como se eu lhe tivesse aplacado a ira e o desassossego interiores. O miúdo sofria de um síndrome de Asperger, que já havia conhecido em detalhe porque uma aluna minha, portadora deste parente do autismo, me fizera querer saber mais. Aproximámo-nos um bocadinho. Ela vende peixe. A minha mãe vai lá muito à peixaria. Eu vou beber muitos cafés à pastelaria do irmão dela.
Esta minha antiga melhor amiga descobriu agora, antes desta quadra que me irrita solenemente, que tem uma leucemia aguda e está infestada de gânglios que a fizeram suspeitar que algo não estaria bem. Vai estar um mês no hospital. Eu vou vê-la. Não sei muito bem o que lhe vou dizer mas prometi a mim mesma que não vou chorar. Acho que lhe vou oferecer um gorro bem modernaço para que ela se sinta igualmente bela, sem ponta de cabelo. Os olhos verdes devem notar-se muito mais. Tenho que pensar no meu discurso... eu sou muito, muito optimista mas a única coisa que me ocorre é que esta vida é mesmo uma merda.
1 comentário:
nestas coisas não há palavras, são todas demais, um beijo para a tua amiga...
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